É difícil imaginar no Alentejo o entardecer bucólico com sinos a badalar ave-marias. No Alentejo o som dos bronzes quase só anuncia funerais. A terra é tão áspera que se não comove com o pôr do Sol. Pelo contrário: geme então, lambendo as feridas rasgadas por um sol de dentes afiados. É quando despega então um cantar magoado, como se temesse haver nada para lá da noite que chega.
É um cantar a dar conta do homem e do seu mundo. Um mundo vacilante e frágil, entre o desejo de ficar e a vontade de partir. Como o Alentejo: preso à raiz e forçado a voar, se quiser sobreviver.
O Alentejo canta em coro, como sempre o terá feito. Mas o grupo coral não é voz de uma solidão colectiva: é a adição de solidões individuais.
Nem o próprio cantar é uniforme. Tem altos e baixos. As vozes não soam todas ao mesmo tempo. Há um ponto, um alto, um baixo. Sons que se destacam no entoar da moda, que é a soma da letra com a musicalidade das vozes.
A moda evolui, como tudo. A moda nasceu dos despiques da taberna, em redor do copo de vinho, nos ranchos da ceifa e da monda. Nasceu ao anoitecer no regresso dos ceifeiros a casa. Rompeu com os primeiros raios do astro, a surpreender os ranchos vergados sobre o trigo quando o trabalho se fazia "de sol a sol".
O cante retrata a solidão e a tristeza. O amor e o trabalho. A alegria. O sol e a terra. O suor. Canta o trigo e as cegonhas. A emigração e a barragem de Alqueva. Canta a morte e a vida. Angústias e sonhos. Canta o homem perdido em inalcançáveis longitudes. É terno e quente. Ingénuo e grave. Sóbrio e triste. Solene como uma catedral. E, como ela, eleva-se da terra, atingindo alturas tais que se mistura com o lamento dos descampados, não se sabendo já se são criaturas ou os próprios plainos que assim gemem.
Vem com a lua e com ela atravessa os ares. Temeroso, talvez, de o sol não voltar a nascer.
Pedro Ferro, Descubra Portugal
4 comentários:
Desde muito cedo habituei-me a ouvir o cante Alentejano em todas as festas e reuniões familiares. O meu pai e os meus tios fizeram parte de alguns grupos de cante, e isso incutiu-me um gosto e um carinho muito especiais por esta forma de cultura. Considero que é de cultura que se trata, a cultura de um povo que através de um cante sentido, exprime a alegria, a tristeza, toda uma forma de viver e encarar a vida, que por vezes não foi e não continua a ser fácil. Nos dias de hoje, o cante continua a exprimir elementos essenciais da cultura popular, mas de outra forma, em virtude das mudanças sociais que se verificaram.
O cante mais tradicional é todo ele envolvido numa profunda nostalgia que invoca quase sempre o amor, o campo, a saudade e a tristeza.
É com tristeza que constato que uma grande parte dos jovens Alentejanos ignoram, e mesmo repudiam, esta forma musical que faz parte da sua cultura e da nossa vivência secular. Ao mesmo tempo, assisto ao aparecimento de escolas de música e danças espanholas por todo lado, dando a sensação que tudo o que vem de fora é que é bom.
Não compreendo esta forma de pensar, porque um povo só será reconhecido lá fora por aquilo que faz de melhor, ou seja por aquilo que é nosso e não por aquilo que é dos outros.
O cante Alentejano tem algo de fascinante porque é composto de modas nas quais sobressaem dois sistemas musicais distintos: o sistema modal e o sistema tonal. O sistema modal foi utilizado durante toda a Idade Média, enquanto que o sistema tonal teve a sua origem no Renascimento, no século XVI.
Por isso, pelo seu carácter patrimonial que foi capaz de integrar diferentes contributos musicais, o cante deve ser defendido e preservado na sua matriz cultural.
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