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quarta-feira, julho 22, 2009

O Alentejo tem uma História por contar!

Silva Porto, Colheita – Ceifeiras, 1893.


O Museu Etnográfico de Serpa exibe um curioso artefacto. É um cesto de vime em forma de cabaça: largo no fundo e estreito na boca. Um bonito cesto, dizem os visitantes. Raros sabem estar diante de um objecto concebido como instrumento de humilhação.
O cesto é do tempo em que se trabalhava de ar a ar nos campos do sul. Ar a ar e mais do que de sol a sol: pegava-se no trabalho à primeira tímida c1aridade do dia, antes do sol despontar e largava-se depois do sol-posto, ate já não haver mais luz.
O objecto servia para conter azeitonas postas pelo patrão para o comer dos ranchos. Cada trabalhador rural só podia servir-se uma única vez das azeitonas do cesto. Metia lá dentro a mão e trazia os frutos negros. Mas a boca do cesto é propositadamente esguia e estreita. Uma mão fechada sobre um punhado de azeitonas não cabe por ela. Assim, cada rural não conseguia apanhar mais do que duas ou três azeitonas que puxava mal equilibradas na ponta dos dedos. Os dedos alongavam-se sobre o magro conduto que, assim, ainda se tornava mais magro. Estas azeitonas eram, por vezes, o único acompanhamento que um homem tinha para a dentada de pão de trigo com que se alimentava no intervalo de um trabalho duro - de ar a ar. Eis a perfídia escondida atrás de um elegante cesto de delicado vime.
O mesmo cesto fazia parte de um tempo que uma já envelhecida geração de alentejanos se recusa a esquecer: o tempo em que um atraso de minutos na chegada ao local da monda, da ceifa, da tiragem da cortiça ou da safra da azeitona equivalia a que o feitor ou manageiro já não deixassem o trabalhador pegar no trabalho, perdendo este o dia de salário. Isto depois de ter palmilhado léguas e léguas para lá chegar.
O tempo em que os patrões não davam transporte e os rurais, mulheres e homens, iam a pé para as herdades, quilómetros e quilómetros, os cães a ladrarem-lhes aos caminhos, saindo estremunhados de casa a meio da noite, voltando embrutecidos de trabalho quando a lua se levantava no céu.
O tempo em que nem o cantar à noite era paliativo, porque o proibia a Guarda Republicana a golpes de cavalo-marinho.
O tempo em que o vinho sem petisco enganava a tristeza e a solidão das noites sem futuro e as bebedeiras pregavam partidas à fome.
O tempo em que os filhos não eram meninos, mas se agarravam ao sacho e à foice aos oito ou nove anos de idade, por vezes apenas a troco de miserável comida.
O tempo em que as intempéries prendiam os homens em casa não os deixando ganhar um só tostão. Era então, nos longos invernos de enxurrada, que as Casas do Povo organizavam uma espécie de sopa dos pobres para matar a fome a famílias em desespero.
O tempo em que um homem era levado para a cadeia entre dois guardas a cavalo por ter apanhado um punhado de bolotas para enganar a fome dos filhos. O tempo em que um braçado de lenha para a lareira doméstica apanhado num montado valia uma dose de bastonadas no posto da GNR a humilhante fama de ladrão.
O tempo em que um protesto, uma sugestão de discordância, um amuo valiam a um homem o epíteto de comunista e lhe dava direito a não ser aceite em nenhuma herdade devido à solidariedade dos agrários.
O tempo em que uma só sardinha alimentava pai, mãe e três ou quatro filhos. A chaminé era a bitola para a justa divisão da sardinha. Ficava com o lombo aquele cuja cabeça chegasse ao ponto mais alto da chaminé.
Esta é uma gesta que ainda está por escrever. Parece uma história inventada e, contada, há quem duvide. Mas era assim mesmo e há uma geração que não esquece.






in Público, 3 de Julho de 1994

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