Aqui posto de comando do Movimento das Palavras Armadas.

segunda-feira, maio 02, 2005

O que é, afinal, a democracia? (excertos)

José Saramago *

Le Monde Diplomatique – Edição Brasileira

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Abdicação cívica

As instâncias do poder político tentam desviar a nossa atenção do óbvio: dentro do próprio mecanismo eleitoral, encontram-se em conflito uma opção política, representada pelo voto, e uma abdicação cívica. Não é facto que, no momento exacto em que a cédula é introduzida na urna, o eleitor transfere para outras mãos – sem qualquer contrapartida, salvo promessas feitas durante a campanha eleitoral – a parcela de poder político que detinha até então enquanto membro da comunidade de cidadãos?

O papel de advogado do diabo que assumo pode parecer imprudente. Mais um motivo para que examinemos o que vem a ser a nossa democracia e qual a sua utilidade, antes de pretendermos – uma obsessão de nossa época – torná-la obrigatória e universal. Essa caricatura de democracia que, como missionários de uma nova religião, procuramos impor ao resto do mundo não é a democracia dos gregos, mas um sistema que os próprios romanos não teriam hesitado em impor em seus territórios. Este género de democracia, deteriorado por mil parâmetros económicos e financeiros, teria conseguido, sem dúvida alguma, mudar a opinião dos latifundiários do Lácio, que se teriam tornado os mais ferrenhos dos democratas...

Pode passar pelo espírito de alguns leitores uma desagradável suspeita sobre as minhas convicções democráticas, tendo em vista as minhas notórias posições ideológicas [3]... Defendo a ideia de um mundo verdadeiramente democrático que se tornaria realidade dois mil e quinhentos anos depois de Sócrates, Platão e Aristóteles. Essa quimera grega de uma sociedade harmoniosa, que não se dividiria em senhores e escravos, tal como a concebem os cândidos espíritos que ainda acreditam na perfeição.

A vontade política e o voto

Poderão dizer: mas as democracias ocidentais não são censitárias [4], nem racistas e o voto do cidadão rico e branco tem o mesmo valor nas urnas que o do cidadão pobre e de pele morena. Se confiássemos em tais aparências, teríamos atingido o supra­‑sumo da democracia.

Sob o risco de diminuir essas paixões, eu diria que as realidades brutais do mundo em que vivemos tornam ridículo esse cenário idílico e que, de uma ou de outra maneira, acabaremos por cair num organismo autoritário dissimulado sob os mais belos paramentos da democracia.

O direito de voto, por exemplo, expressão de uma vontade política, também é um acto de renúncia a essa mesma vontade, pois o eleitor a delega a um candidato. O acto de votar, pelo menos para uma parcela da população, é uma forma de renúncia temporária à acção política pessoal, discretamente adiada até às eleições seguintes, quando os mecanismos de delegação de poder voltarão ao ponto de partida para tudo recomeçar de novo.


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Democracia paralisada

Pensávamos ter avançado, mas, na realidade, recuamos. Falar de democracia se tornará cada vez mais absurdo se nos obstinarmos em identificá-la com instituições que respondem por partidos, parlamentos ou governos, sem proceder a um exame do uso que estes últimos fazem do voto que lhes permitiu o acesso ao poder. Uma democracia que não faz autocrítica está condenada à paralisia.

Não concluam que sou contra a existência de partidos: sou militante de um deles. Nem pensem que abomino parlamentos: eu os apreciaria mais se se dedicassem mais à acção do que à palavra. E também não imaginem que sou o inventor de uma receita mágica que permitirá aos povos que vivam felizes sem governos. O que me recuso a admitir é que só seja possível governar e desejar ser governado segundo os modelos democráticos vigentes, incompletos e incoerentes.

Qualifico-os assim porque não vejo outra forma de designá-los. Uma verdadeira democracia que, como um sol, inundasse todos os povos com a sua luz, deveria começar pelo que temos à mão, ou seja, o país em que nascemos, a sociedade em que vivemos, a rua em que moramos.

Se essa condição não for respeitada – e não o é – todos os raciocínios acima citados – ou seja, o fundamento teórico e o funcionamento experimental do sistema – serão viciados. Purificar as águas do rio que atravessa a cidade de nada adiantará, se o foco da contaminação se encontra na nascente.


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Operação estética barata

Na realidade, chamar um governo “socialista”, ou “social-democrata”, ou ainda “conservador”, ou “liberal”, e denominá-lo “poder” não passa de uma operação estética barata. Trata-se de fingir dar nome a algo que não está ali, onde querem nos fazer crer que esteja. Pois o poder, o verdadeiro poder, está em outro lugar: é o poder económico. É aquele do qual percebemos o contorno em filigrana, mas que nos foge quando tentamos aproximar-nos e contra-ataca se entende que desejamos limitar a sua influência, submetendo-o às regras do interesse geral.

Em termos mais claros: os povos não elegeram os seus governos para que estes os “ofereçam” ao mercado. Mas o mercado condiciona os governos para que estes lhe “ofereçam” os seus povos. Em nossa época de globalização liberal, o mercado é o instrumento por excelência do único poder digno desse nome: o poder económico e financeiro. Este não é democrático, pois não foi eleito pelo povo, não foi gerado pelo povo e, principalmente, não tem por objectivo a felicidade do povo.

Governo dos ricos

Aqui, apenas enuncio verdades elementares. Os estrategas políticos, de toda e qualquer filiação partidária, impuseram um silêncio prudente para que ninguém ousasse insinuar que continuamos cultivando a mentira e aceitamos ser os seus cúmplices.

O chamado sistema democrático parece, cada vez mais, um governo dos ricos e, cada vez menos, um governo do povo. Impossível negar o óbvio: a massa de pobres convocada a votar jamais é chamada a governar. Na hipótese de um governo formado pelos pobres, em que estes representassem a maioria – como Aristóteles o imaginou, em sua Política –, eles não disporiam de meios para modificar a organização do universo dos ricos, que os dominam, os vigiam e os oprimem.

A pretensa democracia ocidental entrou numa etapa de transformação retrógrada que ela é incapaz de deter e cujas consequências previsíveis serão a sua própria negação. Não é necessário que alguém assuma a responsabilidade de liquidá-la; ela própria se suicida diariamente.



O tabu da democracia

O que fazer? Reformá-la? Sabemos que reformar, como bem disse o autor do Il Gattopardo [5], nada mais é do que mudar o necessário para que nada mude. Renová-la? Que época do passado teria sido suficientemente democrática para que valesse a pena a ela retornar para, a partir dali, reconstruir com novos materiais aquilo que estivesse no caminho da perdição? A da antiga Grécia? A das repúblicas mercantis da Idade Média? A do liberalismo inglês do século XVII? A do século do Iluminismo francês? As respostas seriam tão fúteis quanto as perguntas...

O que fazer então? Paremos de considerar a democracia como um valor adquirido, definido de uma vez por todas e intocável para sempre. Num mundo em que estamos habituados a debater qualquer assunto, um único tabu persiste: a democracia. Salazar (1889-1970), o ditador que governou Portugal por mais de quarenta anos, afirmava: «Não se questiona Deus, não se questiona a pátria, não se questiona a família». Nos dias de hoje, Deus é questionado, a pátria é questionada e, se não questionamos a família, é porque ela própria se encarrega de fazê-lo. Mas não se questiona a democracia.

Então, digo: questionemos a democracia em todos os debates. Se não encontrarmos um meio de a reinventar, não perderemos apenas a democracia, mas a esperança de ver um dia os direitos humanos respeitados neste planeta. Isso seria o fracasso mais estrondoso de nossos tempos, o sinal de uma traição que marcaria a humanidade para sempre.


* Escritor português. Prémio Nobel da Literatura.

[3] José Saramago é filiado no Partido Comunista português.

[4] N.T.: No império romano, o cidadão deveria pagar o censo para ser eleitor ou elegível.

[5] Romance póstumo do escritor siciliano Giuseppe Tommasi di Lampedusa (1896­‑1957), publicado em 1958, com edição francesa, de 1959, pela editora Seuil, Paris. É atribuída a Lampedusa a célebre frase: «É preciso mudar tudo para que nada mude».

3 comentários:

dessossegado disse...

Camarada, tenho reparado numa coisa que tu fazes com muita frequência. Colocas posts, que me parecem simples cópias de sites noticiosos portugueses.
Apesar disso, espero que continues com o teu belo travbalho.

joroca disse...

É verdade...

Eu gostaria de escrever mais textos da minha autoria, porém, o trabalho do dia-a-dia impede-me de o fazer! Esta altura é critica e vai ser dificil actualizar o blgue com textos meus e muito mais com textos de outros autores. O que eu faço não se deve À falta de imaginação, nem criatividade, mas sim à falta de tempo!! Vou fazer o possível!

Obrigado.

joroca disse...

Mas também será porventura injusta a crítica, pois se reparar só 2 ou 3 post's de texto é que não serão meus!


Obrigado na mesma...