(…)
Não há qualquer dúvida de que grande parte do que os bloquistas dizem é brilhante, inovador e, sobretudo, tem muita graça. Os jornalistas estão pelo beicinho. Pode mesmo dizer-se que o Bloco de Esquerda é sobretudo uma construção mediática. A imprensa adora-os, enquanto acha, por exemplo, que o PCP é sempre bafiento, confuso e antiquado. Os comunistas são talvez quem tenha, aqui, mais justas razões de queixa. Sendo concorrentes directos e com uma representatividade múltipla, mesmo após a descida (mantêm quase o triplo dos votos e o quádruplo dos deputados), foi-lhes dada uma cobertura jornalística muito menor e sempre hostil.
(…)
Mas a grande vantagem política do BE é a de gozar de confortável posição de «minoria absoluta», como dizia o seu antigo lema. Como, o que quer que aconteça, não pensam ter responsabilidades de Governo, podem propor as ideias mais loucas, os projectos mais radicais, sem nunca terem de pensar nos seus reais custos ou efeitos. Dizem o que lhes apetece, atacam quem lhes agrada, denunciam o que querem, sem sofrerem consequências. Várias vezes usaram esta qualidade para dizerem coisas sensatas e difíceis, expondo erros graves e abusos importantes. Mas, normalmente, etilizaram-na apenas para terem graça e ganhar votos na juventude e nos desiludidos do sistema, aliás, crescentes. Usam o valor sempre inestimável da completa irresponsabilidade.
Tudo isto gerou condições preciosas para a sua afirmação. A única surpresa é que tenham crescido tão pouco. Mas, mais precioso ainda, o ambiente permitiu-lhes evitar sempre a clarificação ideológica. Porque, é preciso dizer, toda a existência do Bloco de Esquerda se baseia num grande equívoco e incongruência. O mais notável é que ele tenha sobrevivido tantos anos, sem nunca ter de responder às perguntas centrais respeitantes à sua identidade.
Nunca existiu em Portugal um partido com maior disparidade entre a doutrina que perfilha e a origem sociológica e vida concreta dos seus apoiantes. Os votantes e dirigentes do Bloco de Esquerda afirmam-se defensores dos valores da esquerda mais pura e radical, e, no entanto, são universitários que nunca falaram com um operário e só conhecem os bairros de lata pelas fotografias da National Geographic.
São o contrário do que dizem ser. Odeiam as multinacionais, mas vestem camisolas GANT, ténis Nike, usam Swatchs e frequentam o McDonald’s. Vão para as manifestações contra a globalização com telemóveis finlandeses, perfume francês e walkmans «made in china». Se fosse criada a «taxa Tobin», o imposto sobre grandes fortunas, alguns veriam efeitos desagradáveis nas mesadas. Consideram horrível «este sistema», em que participam plenamente vendo a SIC Radical, vestindo roupa de marca, lendo revistas da moda e beneficiando de todos os confortos da média e alta burguesias, a que pertencem plenamente.
Esta incongruência é parte central do seu encanto. O PS defende a reforma do sistema actual; o PCP, o PEV, o PCTP/MRPP e o POUS querem um outro modelo concreto. O Bloco é a utopia, o ideal, o sonho. E, sobretudo, é muito cómico.
João César das Neves
In “Diário de Notícias”
25 de Março de 2002
Não há qualquer dúvida de que grande parte do que os bloquistas dizem é brilhante, inovador e, sobretudo, tem muita graça. Os jornalistas estão pelo beicinho. Pode mesmo dizer-se que o Bloco de Esquerda é sobretudo uma construção mediática. A imprensa adora-os, enquanto acha, por exemplo, que o PCP é sempre bafiento, confuso e antiquado. Os comunistas são talvez quem tenha, aqui, mais justas razões de queixa. Sendo concorrentes directos e com uma representatividade múltipla, mesmo após a descida (mantêm quase o triplo dos votos e o quádruplo dos deputados), foi-lhes dada uma cobertura jornalística muito menor e sempre hostil.
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Mas a grande vantagem política do BE é a de gozar de confortável posição de «minoria absoluta», como dizia o seu antigo lema. Como, o que quer que aconteça, não pensam ter responsabilidades de Governo, podem propor as ideias mais loucas, os projectos mais radicais, sem nunca terem de pensar nos seus reais custos ou efeitos. Dizem o que lhes apetece, atacam quem lhes agrada, denunciam o que querem, sem sofrerem consequências. Várias vezes usaram esta qualidade para dizerem coisas sensatas e difíceis, expondo erros graves e abusos importantes. Mas, normalmente, etilizaram-na apenas para terem graça e ganhar votos na juventude e nos desiludidos do sistema, aliás, crescentes. Usam o valor sempre inestimável da completa irresponsabilidade.
Tudo isto gerou condições preciosas para a sua afirmação. A única surpresa é que tenham crescido tão pouco. Mas, mais precioso ainda, o ambiente permitiu-lhes evitar sempre a clarificação ideológica. Porque, é preciso dizer, toda a existência do Bloco de Esquerda se baseia num grande equívoco e incongruência. O mais notável é que ele tenha sobrevivido tantos anos, sem nunca ter de responder às perguntas centrais respeitantes à sua identidade.
Nunca existiu em Portugal um partido com maior disparidade entre a doutrina que perfilha e a origem sociológica e vida concreta dos seus apoiantes. Os votantes e dirigentes do Bloco de Esquerda afirmam-se defensores dos valores da esquerda mais pura e radical, e, no entanto, são universitários que nunca falaram com um operário e só conhecem os bairros de lata pelas fotografias da National Geographic.
São o contrário do que dizem ser. Odeiam as multinacionais, mas vestem camisolas GANT, ténis Nike, usam Swatchs e frequentam o McDonald’s. Vão para as manifestações contra a globalização com telemóveis finlandeses, perfume francês e walkmans «made in china». Se fosse criada a «taxa Tobin», o imposto sobre grandes fortunas, alguns veriam efeitos desagradáveis nas mesadas. Consideram horrível «este sistema», em que participam plenamente vendo a SIC Radical, vestindo roupa de marca, lendo revistas da moda e beneficiando de todos os confortos da média e alta burguesias, a que pertencem plenamente.
Esta incongruência é parte central do seu encanto. O PS defende a reforma do sistema actual; o PCP, o PEV, o PCTP/MRPP e o POUS querem um outro modelo concreto. O Bloco é a utopia, o ideal, o sonho. E, sobretudo, é muito cómico.
João César das Neves
In “Diário de Notícias”
25 de Março de 2002